– Nero, assim você vai queimar toda a cidade! – disse inesperadamente um alto homem encapuzado que à meia-luz assomara repentina e misteriosamente diante de um grupo de jovens sentados ao redor de uma fonte ornamental seca, no centro de um calçadão aéreo. Todos aparentemente exaustos, tinham diante deles o único membro, com os bastos e desnudos braços cheios de cicatrizes por queimadura, que se encontrava de pé, de frente, um jovem branquelo, musculoso, de regata, cabelos curtos e encaracolados da cor do cobre. Ele se virou com o comentário.
– Professor Anarco – disse o forte jovem ruivo sem esboçar reação, mas com seus olhos claros esgazeados de uma forma que, mesmo natural, conferiam muita hostilidade à sua sardenta verônica.
Anarco, ligeiramente mais alto que o interlocutor de expressão pouco amistosa, dele se aproximou e o encarou com seu costumeiro e inabalável riso zombeteiro.
– Precisa ser mais seletivo, meu caro. Com essa ideia de atacar em massa, não vai deixar ninguém vivo para cantar as suas glórias – disse Anarco inelutavelmente irônico, mesmo sob a densa penumbra que ali a todos envolvia.
– Quer nos ensinar a combater sem nunca ter nos acompanhado em uma caçada? – disse Nero inalterável, ou seja, com sua natural expressão de olhos ferozes.
– Não é isso, Nero – disse Anarco também inalterável, sem se intimidar. – Se estive ausente dos últimos e mais emocionantes momentos da vida de vocês – os membros do grupo atrás se mexeram, como se estivessem reagindo a um repentino desconforto –, foi porque estava atrás de recursos que pudessem nos dar vantagem sobre os nossos oponentes.
Com a expressão estática, vazia, acompanhando o terroroso olhar que, de tão fixamente aberto, parecia na verdade era não mirar nada, como se fosse a vista de alguém sempre fora de si, Nero, em resposta ao que dissera Anarco, apenas movimentou em semicírculos a cabeça, sem desviar dele a parte pelo menos física de sua atenção. Mas, de repente, esticou os lábios, demonstrando um inesperado riso que, ainda assim, nem de longe lhe conferiu alguma coisa de hospitalidade no semblante imutavelmente intimidador. Os que o acompanhavam, naquele instante ainda sentados, não voltaram a se mexer. Mas pareciam com a expectativa de algo, tamanho era o silêncio deles.
– Não faz ideia de tudo o que passamos, professor – disse Nero num grave tom de alerta, em profunda contradição com seu riso de então. – Muitos de nós sucumbiram, e outros tantos se encontram prestes a sucumbir, numa impaciente situação de lenta e dolorosa agonia com suas queimaduras renitentemente abertas a todo tipo de infecção.
– Eu sei. Vocês estão tendo muitas baixas nesses embates que estão empreendendo contra outros grupos que também dominam a Técnica Elementar – disse Anarco, e balançou negativamente a cabeça, em provocação, com ar superior. – Estão agindo errado. Devem mudar de tática, obrigando, na maior parte das vezes, o inimigo a capitular, em vez de morrer.
Nero continuava sorrindo, medonhamente.
– Professor, em nossos encontros de vida ou morte não temos tempo para pensar – disse Nero, assumindo um tom irônico. – Numa literalmente infernal peleja pela sobrevivência, vence o mais selvagem, aquele que nunca hesita em queimar quem está do outro lado. E o melhor, ou pior, quanto com mais queimadas de pessoas nos envolvemos, mais queremos nos envolver. Eu diria que é uma espécie de “círculo de fogo vicioso em querosene”. Não há nada que nos estimule mais a reagir do que o ardido de uma queimadura até a carne viva. Se você me queima, eu vou sempre querer queimá-lo em dobro, para não dizer queimá-lo completamente.
Sem o que dizer de imediato, Anarco vacilou momentaneamente diante das colocações suicidas do interlocutor, com seu raciocínio claro no que se referia à disposição que ele, Nero, tinha para a inconsequência ao extremo. Correu o olhar rapidamente pelos outros atrás, reparando desta vez em suas petrificadas expressões sob a sombra igualmente hostis, até então ignoradas. Sorriu seu costumeiro riso de zombaria na tentativa de recuperar sua confiança, contudo sem tanta convicção, pela primeira vez.
– É preciso urgentemente desequilibrar esse jogo cujo persistente empate rende decididamente insustentáveis saldos negativos para todos os lados – disse Anarco também pela primeira vez sério. Subtraiu um pequeno aparelho retangular do bolso de seu sobretudo vermelho. Deu uma sequencia rápida de piscadelas diante dele até surgir um programa específico com o qual acionou novos comandos apenas com o movimento ocular. Em seguida, diante de seus momentaneamente confusos expectadores, olhou para o céu já quase todo noturno, como se esperasse algo. – E, para desempatar esse jogo de soma invariavelmente muito mortal, eu lhes trouxe estes recursos dos quais lhes falei que dos quais eu estava atrás. – Subitamente, um dirigível apareceu no alto e liberou uma grande carga por meio de um paraquedas.
Sem demora, a carga pousou sem solavanco a poucos metros dali, no chão daquela praça aérea às escuras. Os jovens que acompanhavam o interlocutor de Anarco levantaram-se com surpresa, mas não saíram do lugar, tal qual Nero. Nero olhou da carga recém-caída para Anarco sem dizer nenhuma palavra. Com seus olhos sempre tão arreganhados que, endurecendo suas faces, acabavam impedindo-o de demonstrar qualquer reação, ele manteve-se imóvel, numa postura completamente sem sentido, o que apenas aumentava a percepção de fora de seu instinto de louco.
Foi então que, num átimo, Nero saltou no rumo de Anarco levando sua grande mão fechada no movimento do corpo. E antes que alcançasse Anarco nesse salto, adiantou o punho quando o deitou meio de esguelha. O soco pegou no lado esquerdo de Anarco, no alto de seu rosto precariamente guarnecido pelo antebraço também esquerdo, com o impacto de uma marretada.
Anarco, que conseguira no ato do ataque sofrido criar um flash de luz intensamente branca capaz de aturdir Nero, foi lançado de lado ao chão mesmo se defendendo, onde tentou se recompor da tão violenta pancada e de algumas chamas que, para piorar, tomaram parte de seu cabelo e de seu grande casaco.
O clarão cegante até fez Nero recuar, mas por um instante, porque ele se recuperou mais de pressa que seu professor, podendo se lançar então novamente para cima dele com sanha redobrada, visto que Anarco se achava completamente ocupado com o fogo pelo seu corpo, tentando se livrar de seu casacão em combustão. Nero aplicou-lhe um implacável chute no peito enquanto, agachado e afobado, pretendia fazer o movimento final, para cima, para erguer-se e arremessar para longe parte de sua grande roupa que queimava.
Embora interpondo ao chute novamente a mão para tentar se proteger, Anarco com o golpe foi lançado outra vez para o chão, agora à frente, com mais chamas pelo corpo. Ainda não tinha conseguido se livrar do grande casaco tomado pelo fogo. Sem trégua, Nero o seguiu e lhe aplicou outro violentíssimo pontapé na cabeça, que Anarco defendeu muito precariamente com uma das mãos, chegando quase a desmaiar ante a pancada, enquanto ao mesmo tempo ele recuava com um giro descontrolado pelo chão.
Irremediavelmente acabado, Anarco já não podia mais lidar nem com as chamas a se alastrarem pelo corpo. Diante dele, estava Nero, que olhou para trás, para os seus companheiros, todos até então espectadores impressionados com toda a violência a que assistiam. E para tirá-los da letargia, Nero moveu seu ali visivelmente eufórico rosto, com a boca sedentamente aberta, em direção a Anarco e de volta para eles, como que os convocando para uma espécie de “compartilhamento” de seus atos de imensa brutalidade. Jovens como garotas e garotos, um olhando para o outro com perversos risos buscando a confirmação do entendimento grupal, os oito, o número que totalizavam, partiram correndo, com sanha crescente
Ainda mais brutalmente, Anarco foi tomado por uma saraivada de chutes de todos os lados, a qual prosseguiu implacável, sem que ele oferecesse a mínima resistência, acompanhada de mais chamas.