A paisagem em volta, na verdade, fora quase que completamente dissolvida, mesmo ela antes toda feita de aparentemente tão sólida rocha. Chão, paredes e teto podiam ser confundidos no embaralhamento destrutivo a que foram submetidos os cenários, isso quando ficavam praticamente irreconhecÃveis na forma de um mundo de cacos de pedra. Mas, pelo menos os igualmente muitÃssimos extensos começos das tanto Ãngremes quanto aparentemente intermináveis sequências de escadas nas bases da elevada Torre de Trango se mostravam inteiras. Porque Gaio, agasalhado da cabeça aos pés tal qual os esquimós, tendo galgado com esforço sobre-humano, sob densa névoa, toda essa parte inicial e relativamente intacta da montanha vertical de pura rocha, se encontrava a meio caminho do topo. Contudo não do topo do Mosteiro dos Esquecidos, conforme o jovem, aterrado, mais desalentado do que em todo o excruciante percurso que fizera para chegar ali, constatava visualmente ao inclinar duramente a cabeça para cima.
Gaio, então, diante da terrÃvel imagem impiedosamente desbastada da parte da montanha que abrigava o lugar para retiro para as inquietudes humanas mais longÃnquo que existia, travou, exaurido de todas as esperanças, como se de fato houvesse um obstáculo fÃsico intransponÃvel a um passo de onde estava. O caminho ainda prosseguia sem impedimentos, mas chegar aonde? Os escombros adiante pareciam um amontoado das próprias lápides de tantos que aqui viviam. Eram a sepultura de sua amada?, e a de seu filho? Estava perdendo todo mundo que era parte verdadeira de sua vida. – Gaio de repente sentiu um vazio da solidão mais depressiva tragá-lo por inteiro, lançando-o infinitamente no espaço sideral. O desespero foi tamanho, que ele invejou os defuntos, ou até mesmo os corpos em adiantado estado de decomposição, que imaginava comungando do maior de todos os retiros debaixo daquelas serenas pedras. Um retiro-mor, no qual, na verdade, não acreditava, nem minimamente. Nesse caso, o Universo é mais extenso do que a soma de todas as finitudes? Nunca se morre definitivamente, em parte alguma...
Um forte cheiro de putrefação chegou até Gaio, forçando-o de modo implacável a reconsiderar suas percepções acerca da inóspita realidade a rodeá-lo. Sua desolação, embora isso pudesse parecer impossÃvel, ficou ainda mais profunda: não contava com o direito de descansar nem entre os mortos... Gaio se mexeu. Curvo, arrimado sobre o próprio corpo, voltou a subir as quase invencÃveis escadas, impulsionado mais pelos passos mecânicos do que pela vontade de movimentá-los. Apenas a inércia, na forma de um movimento puro e simples que gera movimento, parecia fazê-lo andar.
Mesmo com lentidão, Gaio foi deixando um degrau após o outro atrás de si e abaixo em velocidade regular. A neblina enregelante, embora mais rala, dissipava-se com vagar. O céu, mais atrás do que acima, porque à frente só existia pedra das mais escarpadas, revelava-se progressivamente mais azul, com sua limpidez permitindo sempre uma passagem maior da luz solar. E o brilho nas rochas, que talvez animasse os espÃritos de quem com ele cruzava, tal qual Gaio, naquele mundo de tão frias sombras, podia ser melhor percebido no calor que o acompanhava, pela simples presença da luz, mesmo que indireta.
Pois Gaio realmente necessitava de algo que mantivesse a acurácia de seus sentidos pelo menos num grau mÃnimo. Muitas vezes, o seu invariavelmente escalonado caminho tinha apenas o granito da montanha, na forma de uma superfÃcie tão ampla como se fosse a parede do planeta, de um lado, e o vácuo, de milhares de metros de altura que separava Trango Tower das outras colossais torres naturais em suas cercanias, do outro. Por isso, mesmo sob extremo cansaço fÃsico e mental, ele ainda precisava tentar manter-se lúcido a todo instante, a fim de que pudesse evitar que uma eventual vertigem o fizesse desviar mortalmente do caminho ou que as constantes rajadas de vento concentradas pelos estreitos espaços entre os desfiladeiros o ejetasse para fora.
Contudo, apenas algumas horas depois, o Sol, tão estimado quanto escasso naquela inóspita região também conhecida como o Glaciar de Baltoro, desapareceu atrás das mais elevadas montanhas e da própria Trango Tower, que ainda, sim, contava com grandes porções de rocha inteiras. As sombras voltaram a encobrir Gaio. Naquele instante, ele adentrava uma área semicoberta, relativamente inteira, com o caminho desobstruÃdo. E, então, algo que muito o surpreendeu, ele ouviu entre os silvos das rajadas de vento e viu atrás das rochas um vulto que parecia vir em sua direção, mesmo em lentidão.
– Mestre Pingue! – disse Gaio admirado, ao finalmente se aproximar do claudicante vulto.
– Gaio! – sussurrou o amigo de Gaio, pesadamente apoiado em um bastão de ferro contra o chão, embora aparentasse mais magro.
Gaio se aproximou mais e deu um forte abraço em Pingue. Ambos visivelmente combalidos, podiam se apoiar um no outro, solidarizando-se verdadeiramente com seus pesados fardos de angústia mental e fÃsica que carregavam.
– Apesar de tudo o que aconteceu aqui, vejo que ainda resiste que nem a montanha! – disse Gaio com emoção.
– Nada como uma escora para nos manter de pé – disse Pingue diante de Gaio com um sorriso ao desabraçá-lo, apontando com a fronte o cabo de metal que empunhava e do qual se referia.
Gaio olhou de perto o inseparável bastão marcial de Pingue, reparando com encanto em seus desenhos de dragões estilizados entalhados.
Então Gaio teve a atenção atraÃda por uma outra pessoa de silhueta bem fina que surgira atrás de Pingue, a distância. Mesmo sem conseguir divisar com certeza quem era, Gaio, ao olhar com surpresa para Pingue, avançou instintivamente, sem esperar que ele pudesse lhe dizer algo a respeito.
– Maia! – chamou Gaio ao se aproximar da jovem de espessa túnica branca, capuz acolchoado e cabeça com já alguns centÃmetros de cabelos, a permanecer no mesmo lugar.
Já diante da amada, Gaio parou e a fitou até que ela, ainda estacada, completamente imóvel como se estivesse tomada por desânimo e que parecia ignorá-lo visualmente, o encarasse nos olhos. Com isso, ele a abraçou, envolvendo os caÃdos braços dela pelos seus, já que não teve o mesmo gesto da parte dela correspondendo ao seu.
– Maia – disse outra vez Gaio com a amada nos braços, apertando-a com calor, ainda que ela se mantivesse inertemente fria.
Mas Maia, mesmo decididamente sem vontade de reagir, ficando inclusive calada, sob a presença fÃsica tão forte de alguém que tanto amou, e num momento de tamanha solidão como aquele, em lugar tão isolado e ainda tomado por tragédia, não conseguiu conter pelo menos as lágrimas, que escorreram silenciosas, mas em grande quantidade.
– Maia, me desculpe por não poder ter estado aqui quando tudo aconteceu – disse em profundo lamento Gaio enquanto, de olhos fechados por causa de seu espÃrito submerso em profunda condolência, mantinha Maia contra o seu corpo. A jovem continuava a verter copiosas lágrimas, que desciam rosto abaixo em filetes ininterruptos de seus olhos.
– Já não mais importa se você tem ou não alguma culpa para mim – disse Maia com uma aparência apática, como se destituÃda de qualquer sentimento. Mas então sua expressão se alterou com um olhar de raiva, de frieza. – Talvez deva mesmo é lamentar o fato de que nunca saberemos se o seu filho seria ou não capaz de perdoá-lo por tê-lo deixado aqui sucumbir, neste lugar, quando iniciava toda a sua vida.
Gaio levou um choque. Sentiu uma depressão no peito que o afundou, a ele todo, por dentro. Sua expressão, de olhos que permaneciam fechados, voltou ainda mais para dentro com as pálpebras cerradas com força. Fechou-se em completa consternação, como se a dor que manifestava estivesse absorvendo-o por inteiro. Não existia consolo. Nem mesmo no corpo de Maia, pois, repentinamente, a percebeu gélida como o ar de elevada altitude que ali soprava e quase tudo congelava.
Maia se afastou e Gaio abriu os olhos para encará-la. Mas Maia, ainda totalmente impassÃvel em seus gestos, e que cessara de chorar, conservou o olhar por baixo, lançando-o ao vazio.
Gaio permaneceu em silêncio, respeitando completamente o sofrimento da amada. Não podia nada fazer.