Ao posar no chão, ergueu pesadamente a perna para firmá-la com o pé no primeiro de quase uma dezena de milhares de degraus, quando seus músculos colapsaram e ele desabou por inteiro; contudo, uma barra de ferro deslizou ligeira por baixo de Gaio antes que ele tocasse o chão com o restante do corpo, num movimento ascendente de um lado apoiado com o outro no canto da parede à maneira de uma alavanca que o susteve pelas axilas.
– Mestre Pingue! – disse Gaio esmorecido quando olhou surpreso para o lado.
– Gaio! – Pingue, que empunhava o bastão com firmeza, o subtraiu com habilidade para imediatamente lhe tomar o lugar com o corpo, passando um braço de Gaio por cima de seu pescoço. – Pronto para outra subida!?
Gaio sorriu ante a referência ao grande obséquio lhe feito da última vez por Pingue exatamente igual ao novo outra vez por ele lhe oferecido com toda a mesma e imensa boa vontade.
– Ainda há acolhimento, lá em cima, para mim?
– Sim. Todo o Conselho deseja vê-lo.
Gaio hesitou por um instante ao ser lembrado de tudo o que era ou o que imaginavam que ele fosse, desejando ser largado ali mesmo para que todo esse peso que trazia o esmagasse de uma vez por todas. Pingue percebeu com nitidez esse desmarcado abatimento também moral de seu grande amigo.
– Vamos, Gaio. Estou aqui para ajudá-lo.
E Gaio subiu com Pingue a longa escada do Mosteiro dos Esquecidos mesmo que muito lentamente, arrastadamente.
Gaio descansou todo o dia seguinte em sua câmara individual de reflexão. Foi apenas ao final da tarde que recebeu a visita de Pingue.
– Gaio, vim lhe oferecer um complemento à sua recuperação com outro de meus infalÃveis tônicos fÃsicos e mentais – Pingue estendeu uma cabaça arrolhada a Gaio, que se achava deixando o repouso de uma rede diante da vertiginosa abertura para o sistema de montanhas de Trango da câmara.
– Oh! A tão poderosa Aguardente do Dragão! – Gaio recebeu através da mão a cabaça. Desarrolhou-a e aspirou-lhe, com bastante cuidado, por meio das narinas o excessivamente forte aroma fermentado. – Esta parece boa, está ardendo que nem fogo! Obrigado, mestre Pingue.
Em seguida, Gaio tragou um gole que, como atestava o rosto a torcer, lhe desceu pela garganta como brasa, incinerando-lhe por fim o estômago.
Sorrindo, Pingue expressava grande satisfação pelo efeito poderoso a que assistia causar no querido interlocutor. Na verdade, Gaio apresentava-se tão torturado, com os músculos das faces parecendo cada um ter sofrido um nó, que o que seu mestre manifestava talvez não passasse de puro sadismo.
– Tem certeza de que não é Baygon desta vez? – disse Gaio com humor quando conseguiu se recompor um pouco da verdadeira corrosão por que passara em virtude do trago.
– Como da última vez você havia reagido inicialmente muito posudo ao primeiro gole de minha santificada aguardente, profanando-a de certo modo, decidi lhe trazer agora uma versão dela devidamente aditivada, feita de broto de bambu especialmente selecionado.
– Pelas tranças do Saci-Pererê! Não entendo como isto pode ser piorado ainda mais – disse Gaio intrigado, ainda com muito bom humor. Tornou a arrolhar a cabaça lhe presenteada e a depôs em cima da escrivaninha de granito da câmara. – Mas, mestre Pingue, por que o bastão é metálico?
– Ah, o bastão!? Você o reparou? O que achou dele? Ainda vou lhe mostrá-lo em seu verdadeiro contexto. Agora, mais do que um apêndice marcial meu, ele me serve como um condutor.
– Condutor? – Gaio estava surpreso, embora já esperasse isso.
– Exatamente. Não no sentido muscular da força, mas... elétrico mesmo.
– Genial! – Gaio parece ter sacado tudo o que o mestre queria lhe dizer. – Então, percebo que o senhor também encontrou uma destinação própria para a técnica de meu pai, não é isso?
– Sim, é isso mesmo – disse Pingue com orgulho.
– Pois gostaria realmente de vê-lo me mostrar o que pode fazer com esse seu bastão condutor!
– Combinado. Vamos definir uma hora, mas, antes, você deve se encontrar com sua... amiga.
– Maia! – Gaio percebeu que havia se esquecido de sua amada. Com ela, retornou-lhe com o peso de um fardo esmagador tudo o que enfrentara tão duramente de vivência recente. A imagem da morte de sua mãe voltou a esterilizar completamente o mundo que lhe passava pela percepção, o mundo presente e o mundo futuro. Se existia ainda alguma nuance nele de alento para a qual sorrir, esta se apagou definitivamente. E constatou (mais uma vez) como a realidade, sempre capciosa, o seduzia com coisas boas apenas na aparência. Na verdade, essa faceta de realidade lhe projetada da mente inexoravelmente amarrada ao seu corpo fÃsico. Ser miserável! Cisco supremo que me impede de enxergar a nudez última da existência.
– Gaio, se ausentou por provavelmente mais de uma dezena de meses, não foi?
– Não sei – Gaio estava confuso. – Também perdi completamente a noção de tempo. Tempo terrestre, pois estive a atravessar atalhos temporais...
– Algo muito importante nesse intervalo aconteceu entre você e sua amiga – Pingue se achava evasivo, sem, por outro lado, deixar de procurar se passar por sério. – Por isso, deve encontrá-la para saber o que é por você mesmo.
Gaio conservou-se olhando para Pingue, perguntando-se no limite sobre qual maldita desgraça o esperava desta vez.
– Vou providenciar novamente para que se vejam sem que ninguém suspeite.
Gaio notou que o mestre, destituÃdo de entusiasmo, parecia com ele de alguma forma decepcionado.
– Depois, conforme lhe dissera, o Conselho de Savantis gostaria de vê-lo – disse Pingue. Dirigiu-se por meio do olhar a Gaio uma última vez e saiu em silêncio, deixando-o novamente a sós como tão bem convinha naquela câmara de plena solidão.
Acompanhado de Pingue, Gaio foi parar diante da entrada de uma gruta localizada na verdade fora do Mosteiro dos Esquecidos.
– Daqui em diante é com você, Gaio – disse Pingue e retornou sem esperar resposta.
Gaio, entendendo a postura do mestre, voltou a se concentrar no motivo de sua ida até ali e seguiu adiante para a cavidade natural. Seus passos ecoados nas paredes úmidas logo atraÃram a atenção de alguém que veio em sua direção.