Iniciava-se uma manhĂŁ mormacenta, de ar parado. O Sol já brilhava com força, fazendo cintilar o verdor atravĂ©s do orvalho a vegetação rasteira a cercar a lĂmpida e serena lagoa que envolvia o imponente Templo do LĂłtus. E o descampado local conferia ainda mais pujança ao edifĂcio ricamente entalhado em nobre madeira. Exceto pelo rebuliço incansável de pássaros sobrevoando o jardim de lĂłtus luxuriantes em torno da ilhota-base do templo, a ermida conservava uma quietude total. Foi isso o que observou Gaio, parado diante da entrada de uma das quatro passarelas que respectivamente de cada um dos quatro pontos cardeais levavam ao templo de reflexĂŁo filosĂłfica.
Sob um céu imenso, Gaio também viu que podia enxergar muito longe não importava para o horizonte que olhasse. E apesar de sua vista aparentemente terminar, do lado do chão, numa linha verde da relva sem fim até o horizonte, ainda era capaz de perceber uma outra linha acima desta que, por apresentar uma tonalidade diferente de azul, provavelmente não era uma faixa do céu, mas do oceano.
Atravessando pela passarela, Gaio chegou ao primeiro dos sete andares do templo. Não havia vivalma por ali. O silêncio se fazia total, abissalmente imersivo. Gaio podia ouvir com nitidez o som produzido pelas pisadas mesmo leves e vagarosas nos pisos de tacos de uma das quatro câmaras de recepção. E perceber que a luz fúlgida do Sol, coada nos coloridos vitrais do onipresente desenho da flor do lótus das portas duplas de vidro suavemente fosco, transmitia às paredes de madeira que iluminava, às representações de belezas naturais nestas em painéis gravadas, um brilho tinto que avivava como que por magia.
Seguindo em frente, Gaio deixou a câmara retangular abrindo e cruzando a porta dupla do vitral do lĂłtus visto de cima. Acessou a vazia e igualmente silenciosa sala circular central. AtravĂ©s das quatro janelas transparentes entre as quatro portas duplas das quatro câmaras acessadas daquela sala, notou que a lagoa lá fora se encontrava tĂŁo serena que sua superfĂcie parecia um espelho. DaĂ se perguntou se todo o sossego do lugar nĂŁo era irradiado daquele templo.
Gaio começou a galgar os degraus da escada helicoidal que subia rente à parede interna das salas circulares do centro. E chegava ao andar seguinte ao passar por uma porta que, no caminho dessa escada, fechava o andar anterior. No último andar, Gaio parou por um instante para refletir sobre aquele lugar onde o pai tinha sido assassinado. Surpreendeu-se com a disposição dos tacos no chão, os quais davam forma ao desenho dos cinco sólidos platônicos, certamente em homenagem à revolucionária concepção de seu querido e notável pai, de quem sentia muita falta em momentos de tantas dificuldades e incertezas como os que atualmente enfrentava.
Aquela Ăşltima sala se achava bem iluminada pela luz natural do Sol, Gaio reparou. Contudo, ao percorrer os olhos por todas as portas duplas de vidro, embora já esperasse, mesmo assim percebeu amedrontado que uma delas estava tomada pelas sombras, diferentemente das outras. Gaio, daĂ, se aproximou lentamente do vitral escuro, atĂ© ser coberto pela sombra densa alĂ©m do normal a cobrir uma faixa no chĂŁo perto da dita porta.
Imóvel diante dessa porta escura, Gaio ficou fascinado pelo terror que dela emanava, quando alguém saiu da porta dupla oposta.
– Estão chamando esse vitral de o “Lótus Negro” – disse a visita repentina com uma voz familiar a Gaio. Este virou-se e ficou encantado com a revelação.
– Mestre Ji! – exclamou Gaio e avançou para apertar o mestre num abraço caloroso.
– Gaio! Nunca imaginei que um dia fosse ter a alegria de novamente encontrá-lo aqui! – Chang-ji jubilava.
– Estou muito contente também em revê-lo, mestre!
– E o que o trás aqui, Gaio? Não tinha ido enclausurar-se no Mosteiro dos Esquecidos?
Gaio toldou o semblante com tristeza.
– Infelizmente, fui obrigado a deixá-lo e a decepcionar a todos lá. NĂŁo tive outra escolha. Precisava muito vir atĂ© aqui para atravessar o mais urgentemente possĂvel esta porta.
Chang preocupou-se.
– Gaio, não pode atravessar esta porta! O risco será muito alto! Todos que tentaram entrar lá dentro instantaneamente sofreram violentas convulsões! Somente munidos de nossas melhores proteções podemos aguentar tamanha radiação, mas nem assim por muito tempo!
– Por favor, mestre, não se preocupe – disse Gaio com tranquilidade. – Eu consigo deter a radiação, confie em mim. E tenho de entrar lá de qualquer jeito – Gaio voltou-se para a porta dupla negra. – Preciso conferir uma coisa. No momento, para mim, não há nada mais importante no mundo.
Chang nĂŁo escondeu o descontentamento decorrido do insucesso de sua tentativa de dissuasĂŁo. Levou a mĂŁo sobre o ombro de Gaio e lhe disse com franqueza:
– Antes de arrostar bravamente o inimigo que aqui invadira por meio desta mesma porta, o seu pai, dolorosamente antevendo o destino dele, havia me confiado a preservação de sua segurança, e também a de sua mãe. Hoje você é um adulto e, portanto, não posso impedi-lo de fazer o que quiser. Só posso pedir para que tenha cuidado, muito cuidado, Gaio.
Chang estendeu um cartão magnético.
– Por favor, confie em mim, mestre – disse Gaio e apanhou o cartão.
Em seguida, Gaio passou o cartão eletrônico pela ranhura da fechadura da porta dupla escura, destrancando-a. Levou a mão à maçaneta e, enquanto lentamente abria e cruzava o lótus negro, as sombras densas lançadas por este o engoliam aos apreensivos olhos de Chang Ji.
Ao fechar pelo lado de dentro da câmara a porta dupla aterrorizantemente caliginosa, Gaio entĂŁo encarou o perigosĂssimo objeto de seu interesse: um cĂrculo em pĂ© de aproximadamente quatro metros de diâmetro, que flutuava e que compreendia quase toda a largura e a altura daquela sala retangular e era, no meio – Gaio para chegar aqui percorreu os olhos da borda do cĂrculo (a qual estranhamente emitia chispas que nem brasa friccionada de leve, como se o prĂłprio espaço tivesse sido perfurado com um espeto de ferro quente) atĂ© o centro deste mergulhando a vista em sombras cada vez mais profundas, atingindo um limite tĂŁo extremo de escuridĂŁo quanto o de um apagĂŁo eterno do Universo irreversivelmente morto termicamente –, era, Gaio entĂŁo viu, no meio, mais tenebroso que o fundo do poço mais fundo que já vira ou atĂ© imaginara.