Incomunicável com ninguĂ©m, Gaio atravessou os prĂłximos trĂŞs dias encerrado em seu quarto, recuperando-se do excessivo esgotamento fĂsico por que passara por Maia. Dotado de um leito e um assento rusticamente esculpidos no granito bruto, seu aposento, conhecido como a Câmara de ReflexĂŁo dos Solitários, e feita toda de pedra acinzentada, nĂŁo dispunha de mais nada alĂ©m de uma pequena estante, tambĂ©m escavada na rocha e repleta de livros, e uma abertura que, abrindo para uma vista vertiginosa do monumentalmente sereno sistema de montanhas pedregosas de Trango, era denominada pelos reclusos do Mosteiro dos Esquecidos como a Janela do Cosmos, aquela que abria o interior por meio do exterior. Era atravĂ©s dessa janela que os ruminantes enclausurados do mosteiro projetavam suas ideias em busca da ordem no caos, de sentido para a existĂŞncia.
Na imperturbável câmara dos solitários, Gaio ficava o dia todo, por horas a fio, ou lendo, pesquisando, ou escrevendo, ou meditando, ou fazendo tudo isso a um sĂł tempo. SĂł saĂa raramente, para o debate diário com seus colegas, no fim do dia, ou para fazer suas refeições e suas necessidades fĂsicas, num lugar fora do Sistema Trango e longe, alcançado apĂłs a respeitável travessia de quase dez mil metros de escada.
– Toc, toc, toc – ressoou repentinamente a aldrava da porta de madeira da clausura de Gaio, que, no momento, alguma hora após o almoço, não se sabia ao certo em todo aquele mosteiro sem medidores artificiais de tempo, achando-se quieto, deitado em seu leito de pedra e com o olhar perdido em algum lugar distante fora da janela, se levantou surpreso e correu para atender ao chamado.
– Mestre Pingue! – saudou Gaio feliz.
Exalando um suave odor etĂlico, Pingue entrou risonho no quarto de Gaio, trazendo duas cabaças dotadas de bicos improvisados e embolsadas por bolsas de couro estampadas cada uma com o desenho estilizado de um dragĂŁo.
– Trouxe uma danada a vocĂŞ, Gaio – disse Pingue e entregou uma cabaça cheia de um lĂquido a Gaio. – Aguardente do DragĂŁo! Irá ajudá-lo a relaxar um pouco, ainda mais agora que vou lhe dizer que soube que sua amiga já se encontra quase toda recuperada da adversidade que enfrentou.
– Beleza! Fico muito contente e aliviado, então! Vou beber à saúde dela! – interessado, Gaio foi inadvertidamente logo desarrolhando a sua cabaça.
– Devagar, Gaio! – advertiu Pingue sério. – Pode se considerar muito prodigioso com algumas coisas, mas não houve, não há e, assevero, não haverá nunca um calouro que se passará “indiferente” em sua primeira experiência com essa fogosa.
– Quero ver – desafiou Gaio imprudente, e tornou uma destemida golada da alegada bastante malvada. – Arre! – extremamente desconfortável, Gaio levou a mão desesperada ao peito. – Eita! Como desce incinerando! Sinto-me um dragão, capaz de incendiar qualquer coisa ao menor arroto!
– Mas espera aĂ! – disse Pingue cheio de indignação. – VocĂŞ me parece tĂŁo ambĂguo! Afinal, a experiĂŞncia lhe foi boa ou ruim?
Para desespero e desgosto de Pingue, Gaio deu mais uma outra sorvida em sua cabaça, obtendo, em seguida, novamente grande desconforto misturado à prazer.
– Você está encenando, Gaio. Nenhum iniciante, nem o mais tolo, jamais deu duas goladas seguidas... – resmungou Pingue.
– Muito menos três, então – calculou Gaio e, para achanar o orgulho de Pingue de uma vez por todas, deu sua terceira tragada na supostamente impiedosa aguardente do dragão.
– NĂŁo Ă© possĂvel, Gaio – lamentou Pingue sem brios. – Minha gororoba estragou ou vocĂŞ fingiu tĂŞ-la sorvido?
– Nem um, nem outro – rebateu Gaio airoso, mas com os olhos vermelhos que nem pimenta. – Se não acreditar em mim, darei mais um trago, ou quantos forem necessários para escorropichar esta cabaça.
– Não, não, chega! Para mim já é demais – desistiu Pingue e, humilhado, se sentou no assento de granito da câmara, deixando sua cabaça de lado, rejeitada.
Disfarçadamente, Gaio esboçou um alĂvio pelo ĂŞxito de seu blefe.
– Falando sério, mestre Pingue, qual o teor alcoólico desta danada? – quis saber Gaio enquanto tornava a arrolhar rápido o seu presente, pois logo começaria ver vários deles ao mesmo tempo, e o depositava cuidadosamente em cima de sua estante. A arte estilizada do dragão desenhada na bolsa da cabaça despertava-lhe grande interesse.
– 77 por cento – respondeu Pingue sem entusiasmo.
– Pelas tranças do Saci-Pererê! Por pouca coisa, mas é superior ao do absinto!
– Você, assustado, Gaio?! Não me diga! Acabou de me mostrar mesmo que já está batizado há tanto tempo quanto eu! Hum! – zombava Pingue.
– Não exagere, mestre. Só porque aguentei firme a causticação que sua malvada me causou?! Eu sou durão mesmo, cara! He! He! He! – divertia-se Gaio cheio de pose mesmo começando já, tão cedo!, sentir seu quarto rodar um pouco. – E o que mais ela tem de especial?
– Não posso revelar muito. Fui eu quem criou a fórmula, entende?
– Sim, entendo. O senhor a usa para realizar os exercĂcios marciais do lendário Estilo ParabĂŞbado, nĂŁo Ă©?
– Sim, Gaio. Um estilo de luta milenar que, aliás, ainda quero ensiná-lo a você. Agora, voltando à composição de minha preciosa aguardente do dragão, posso lhe informar que sua essência é feita de brotos de bambu, a única que existe.
– Brotos de bambu! Interessante! – Gaio se aproximou da janela. O Sol a pino banhava os cumes gelados do Sistema Trango com luz generosa. Parado, o ar em torno do silencioso mosteiro estava empestado com modorra. – Mestre, está sabendo que um quarto de toda a AerĂłpolis foi destruĂda?
– O quĂŞ? Um quarto de toda a AerĂłpolis destruĂda?! NĂŁo estou sabendo, nĂŁo! Como sabe disso? E por que nĂŁo me contou antes, quando aqui chegou? NĂŁo saiu do mosteiro, saiu? – Pingue ficou chocado e preocupado.
– Não fisicamente. Quero dizer, não para saber especificamente disso – Gaio voltou-se para Pingue e o viu reagir com alguma censura e incompreensão. – Desculpe-me, mestre, mas é que posso transportar minha mente para qualquer lugar da Terra, sem sair de onde estiver.
– Hem?! – Pingue arregalou os olhos e ergueu as sobrancelhas.