Bodhidharma era um centro de aprendizagem e treinamento de kung fu. A menos de meia hora de trem flutuante de Aerópolis, a escola, erguida no sopé de uma alta montanha verdejante – de onde se podia observar uma cristalina queda d’água do cimo da qual –, dispunha de enormes pavilhões de vários pavimentos, construídos com uma arquitetura oriental tradicional esmerada, feita de colunas e outros elementos e motivos em madeira, bambus, taquaras e cipós e coberturas em telha-canal de barro. Com beirais curvos alongados, as coberturas argilosas representavam uma beleza arquitetônica à parte.
Os numerosos pavilhões especializados para a prática de diversos estilos e treinamento com ou sem armas brancas circundavam uma vasta área aberta onde existiam pátios destinados aos exercícios ao ar livre e entremeados com inúmeras árvores ornamentais. No centro do conjunto de pátios, um curso de água vindo da cachoeira da montanha cortava por uma calha de cimento margeada por uma balaustrada de madeira de belos entalhes. Seu gorgolejo suave no leito levemente escalonado da calha transmitia paz aos meditantes e praticantes de tai chi chuan.
Mais ou menos uma hora antes do pôr-do-Sol, desembarcaram do veloz trem numa improvisada e agradável estação natural no meio de uma mata próxima à Bodhidharma Chang Ji, Árktos, Kaze, Polaris e Gaio junto a uma turma de pessoas com o mesmo destino, de variadas idades, homens e mulheres, crianças e idosos. Vestidos todos de queimão de cor branca, o grupo de Chang tomou uma estreita alameda de bambus com passos mais lestos que os demais, intencionalmente para deles se afastar.
– Meu tio, Pingue, embora esteja hoje de partida, cuidou de tudo para nós – disse Chang aos seus acompanhantes atrás, em fila indiana. – E nos reservou, como solicitei, um lugar especial, longe de curiosos.
Quando começaram a suar, a alameda calçada terminou num grande portal cujas traves eram imensos dragões celestiais Tianlong de bronze. Atravessado o portal, o grupo guiado por Chang prosseguiu, já no interior da escola, por entre os pátios onde pessoas faziam exercícios físicos, como idosos impressionando pelas contorções de que eram capazes. Eles rumavam para uma escada de madeira. Enquanto passavam, se interessaram por uma turma de pessoas num determinado pátio, a qual circundava e observava duas mulheres que se embatiam ferozmente com bastões de pau numa luta de aperfeiçoamento mútuo. Elas chamavam a atenção não só pela aglomeração que reuniam em particular, mas também pela série de pancadas secas de pau contra pau e movimentos rápidos e ágeis de exímias lutadoras.
Subiam a escada que acessava um enorme pavilhão coberto, e um homem de meia idade, gordo, barriga meio pronunciada, de membros roliços, cabelos raspados e vestido com uma túnica azul-marinho fechada na frente por cadarço os reverenciou com uma leve inclinação do dorso para frente, as mãos cruzadas para trás e um sorriso agradável no rosto bondoso.
– Olá, tio Pingue! – cumprimentou Chang cheio de admiração pelo tio, abraçando-o.
Cumprimentado os outros que acompanhavam o sobrinho, o mestre Pingue apontou-lhes com um gesto o caminho, o qual seguia por um corredor sob beiral, ao lado de salas fechadas por portas de correr. O último, Gaio, passava, quando Pingue o abordou:
– E aí, Gaio, já pode tapar o Sol a pino com o pé? – Veja, mestre, se melhorei – Gaio ergueu a perna rumo ao alto, acima da cabeça, num alongamento retilíneo, sem fazer caretas, em que deveria ser impossível separar mais os dois membros inferiores de um do outro. – Excelente, rapaz! – disse Pingue impressionado ao passo que voltavam a seguir os outros, mais à frente, pela longa varanda de chão de vigas de madeira que rangiam suavemente às pisadas, teto da qual, em forro também de madeira, pendiam luminárias e lanternas globulares de seda plissada, na ocasião apagadas. – Mas não quer dizer que poderá abandonar a prática contínua de alongamentos, entendeu?. Mesmo que eu não possa fazer o mesmo com tanta desenvoltura! – Não, mestre. Sei que não devo, senão ponho tudo a perder o que conquistei até hoje.
– Muito bem – Pingue conservava o riso no rosto bondoso tal qual um professor satisfeito por seu aluno ter entendido a lição. – Chang me contou que segue uma rotina diária digna da de um monge. Dorme seis horas por noite, se levantando às cinco da manhã para ler até bater a hora de ir para o colégio, às oito. – Sim. Sempre digo que leio para dormir e matino para ler. Sabe, do contrário não teria tempo de dar conta de tudo o que estabeleço para ler. – Sei perfeitamente. No Mosteiro dos Esquecidos, quando nos passamos por monges também seguimos uma rotina semelhante à sua. – Sempre me imaginei conhecendo o Mosteiro dos Esquecidos – disse Gaio com interesse. – Fica no planalto do Tibete, o teto do mundo, não é? – Exatamente. Fica engastado entre as montanhas gélidas que compõem a Cordilheira dos Himalaias. Se quiser, as portas estão abertas lá para você. Mas lembre-se de que, como condição inarredável, precisa aprender a viver em meio a muita solidão e estar preparado a um período mínimo de afastamento absoluto de todos e de tudo por sete anos para poder voltar sem desonrar-nos.
A beleza de um lugar longínquo, esquecido, pautado pela simplicidade e contemplação das coisas e dos seres foi confrontada, na cabeça de Gaio, com a dolorosa possibilidade de se afastar por um significativo intervalo de tempo das duas mulheres de sua vida, sua mãe e sua melhor amiga, Marina, e seu fiel amigo Polaris, os dois últimos eternos cúmplices das travessuras de toda hora oportuna, e a primeira, uma fonte inesgotável de amor e ternura.
– Morar conosco no Mosteiro dos Esquecidos implica exatamente tudo o que transpassou pela sua mente: renunciar às coisas que mais amamos em nossas vidas por um período de tempo suficiente para aprendermos a lidar com perdas e apegos – disse Pingue quando viu a expressão conflitante no semblante de Gaio. – Mestre, e lá o senhor poderia me ensinar etnomatemática? Sei que o senhor tem um mestrado dessa disciplina; e o mestre Ji me disse que encomendou com o senhor uma versão do Jan-ken-pon com os Quatro Elementos. Já está pronta?
– Sim. Meu sobrinho irá apresentá-la a vocês em breve – Gaio ficou ansioso. – Ele deseja com esse jogo com gestos de mãos adaptado tornar popular e lúdica o princípio antagônico da Técnica Elementar entre as pessoas. Pedra, papel e tesoura agora ficarão assim, inspirados gestualmente pela configuração de mãos, pontos de articulação, movimento, orientação e expressão corporal ou facial da língua de sinais: água apaga o fogo; fogo absorve o ar; ar erode a terra; terra abafa o fogo e ainda absorve a água que, por sua vez, se revolta com o ar. Conclusão: aqui se constata que o fogo, junto da água, é um dos dois mais fracos, derrotado duas vezes, mas também o único que ganha de um dos dois maiores vencedores, o ar.
Gaio estava encantado.